Tinha olhos cor de noite e os seus cabelos de fogo ondulavam sob a brisa que lhe acariciava a face. Era pálido como a morte, alvo como a face lunar, e os seus traços rígidos e distantes eram desenhos de sombra na imagem do seu silêncio. Agitavam-se no vento as dobras das suas vestes, negras como as orbes que lhe iluminavam o rosto, fúnebres e lutuosas como o seu negro coração.
Também ele era noite, ainda que ninguém o soubesse. Ele que, perante o mundo, era senhor de mais almas que as que podia contar, o poderoso general das hostes imperiais, não tinha consigo senão a sombra da sua própria solidão. E se, perante os olhos de mundo, ele era de pedra e de gelo, frio e cruel na sua determinação, quando a noite descia sobre si, apenas a angústia partilhava o seu sono atormentado, a tristeza dos seus sonhos estrangulados no passado.
Dele diziam que era imortal, por todas as batalhas impossíveis que havia vencido. Era, contudo, apenas um homem amaldiçoado, aquele que buscava a morte para jamais a encontrar. E, do sussurro das lendas, mil vozes invocavam em uníssono o nome da sua falsa divindade.
Chamavam-lhe Claudius, o silente, o tenebroso. Mas nenhum deles sabia que trevas consumiam o seu coração.
Aqui sou eu a que se esconde na janela do meu quarto. Lá fora, o dia chega ao seu fim, e o céu parece mergulhar na sanguinolenta penumbra de uma noite interminável. Já não se vê o sol, apenas a névoa avermelhada que parece tomar posse de um céu cada vez menos azul. E, para lá do castanho das árvores onde as folhas começam a morrer, a estrada para lá do portão, onde os carros vão passando, de regresso às suas vidas.
São sete horas e vinte minutos, e as gentes regressam a casa. Um velho carro vermelho, depois uma carrinha azul… Um e outro e depois outro, invadindo com o soar dos motores a suave sinfonia dos pássaros e do vento a cantar por entre as árvores.
A minha rua deserta, só minha na minha casa, enquanto vejo o silêncio que paira no anoitecer. Interrompido pelos gritos, pelo esporádico soar de um carro na estrada, ou pelos cães que ladram na distância. Hoje este espaço é só meu. Ninguém me vê e ninguém sabe… que eu vejo todo o universo neste pedaço de terra.
Presumo que tenha nascido naquela estranha noite de tempestade, quando, subitamente, ganhei consciência do meu corpo molhado sob a chuva torrencial, imóvel no limite do abismo, enquanto fitava a lua que me banhava com a sua luz. Pergunto-me, por vezes, se aquele corpo terá recebido uma alma antes da minha, um espírito que se afastou para me deixar entrar, para impedir que o corpo se precipitasse no absoluto nada do desespero e da indignidade de morrer. Ainda assim, desta existência que se tornou minha propriedade, não guardo qualquer memória anterior àquele dia e, por isso, sei que a verdadeira dimensão das respostas nunca chegará até mim.
Vivi os últimos meses numa espécie de peregrinação anterior, rebuscando todos os recessos do meu mundo em busca de uma resposta que me explicasse quem sou, mas foi em vão. No olhar daqueles que me foram encontrar diante do abismo, não vi senão a preocupação de quem me julgava prisioneira da loucura, demasiado insana para tentar sequer compreender. Nunca encontrei, pois, qualquer explicação para a vida que me dominara e, mergulhada no meu silêncio melancólico, aceitei com resignação a travessia para aquele novo mundo.
Foi, contudo, num desses dias de estranha dormência, um dia igual a todos os outros, que, enquanto remexia nas coisas dispersas pelo meu quarto, que nunca olhara com a devida atenção, descobri um pequeno caderno de capa negra, completamente preenchido por uma letra pequenina e perfeita que reconheci como a caligrafia que, entre muitas outras coisas, se tornara minha.
Quanta tristeza havia naquelas palavras… Quanta solidão! Parecia que cada letra era uma lágrima de tinta, a sangue tingida naquele lençol de papel branco, rasgando o silêncio com os seus gritos amordaçados. Como podia ela não ceder ao desespero, quando o seu coração sangrava sem que ninguém visse? Que espécie de existência herdara eu, sem querer?
Desde esse dia, fiz todos os possíveis e impossíveis para tentar compreender a alma que me deixara o seu lugar. Remexi todas as coisas que ela me deixara como legado, em busca de um qualquer sinal que me aproximasse da sua essência, da existência que a preenchera e a consumira. Ainda assim, não encontrei nenhuma resposta, apenas a expressão dos seus negros sentimentos, o seu silencioso grito de desespero. E, quando acreditava que jamais viria a saber que espécie de criatura era e porque tomara o lugar da minha antecessora, a resposta chegou até mim, numa noite também de tempestade, enquanto as asas do sonho embalavam a dormência dos meus sentidos.
“Olá.”, dizia uma voz suave nos meus sonhos, com a leveza melancólica de uma sedução quase irresistível. Parecia ecoar dentro do meu pensamento, quase como se fosse uma parte de mim que eu esquecera, mas que decidira regressar.
“Quem és tu?”, perguntei, surpresa, apesar de suspeitar vagamente de que conhecia a resposta. Ainda assim, depois de todos os esforços que fizera para encontrar as respostas, era difícil conceber o facto de serem elas a vir ao meu encontro.
“Acho que sabes.”, respondeu a voz, e havia um levíssimo vestígio de um sorriso no eco da sua voz. “Tendo em conta que tens passado tanto tempo à minha procura…”
“Conta-me a tua história.”, pedi, hesitante. “Diz-me quem és.”
“Eu já não sou ninguém.”, respondeu ela. “A minha história agora é tua. Mas, se precisas de saber, vou contar-te.”
E nenhum segredo ficou por revelar. Serenamente, como se a distância tivesse atenuado as suas emoções até um ponto suportável, a antiga habitante do meu corpo contou-me o que fora a sua vida e o que fizera com que eu tomasse o seu lugar. Na verdade, naquela noite, cansada de uma existência onde não era senão uma sombra, humilhada pelo mundo que lhe exigia sempre mais, que a agredia constantemente com pensamentos e palavras e que a tentava afastar dos seus sonhos para ditar o rumo dos seus passos, aproximara-se do abismo para pôr um fim à sua vida. Contudo, o medo imobilizara-lhe os movimentos, e, demasiado confusa para continuar, limitara-se a erguer à lua um olhar suplicante, pedindo silenciosamente que a libertasse do peso da sua existência.
“ E a lua respondeu.”, prosseguiu a voz. “Aparentemente, e ainda que não te lembres, tu eras uma estrela cansada da monotonia dos céus. Gostavas de ver a humanidade passar e imaginavas-te a viver entre eles, a experimentar as suas emoções e pensamentos, a novidade de cada dia que passava. Por isso, a lua respondeu ao teu desejo e ao meu, trocando os nossos lugares.”
Silenciosamente, assenti. A revelação era demasiado estranha para assimilar com facilidade, mas, ainda assim, era como se eu sempre o tivesse sabido, algures num recôndito espaço da minha alma. Não poderia, pois, ser falso, o que aquela voz me dizia.
“Nunca pensei encontrar-me contigo.”, prosseguiu ela. “Acreditava que encontrarias o caminho da vida sem que precisasses de conhecer os fantasmas do meu passado. Sabia que eras mais forte e que conseguirias superar os obstáculos do meu caminho, mas… A forma como tentaste compreender-me, como choraste face ao meu desespero, como sentiste as minhas emoções e os meus medos, deu-me a certeza de que devias saber, e, por isso, estou aqui.”
Mais uma vez, limitei-me a um assentimento. Agora que ouvira as palavras da estrela ecoar no meu sonho, sabia que, inconscientemente, a verdade sempre estivera comigo e que aquela vida que, em tempos, ela vivera, era agora absolutamente minha, da mesma forma como o meu lugar no céu passara a pertencer àquela alma atormentada.
“Não vais voltar a encontrar-me.”, disse ela “Agora que sabes quem sou e quem passaste a ser, não precisas da minha companhia. Ainda assim, quando te parecer que os problemas são demasiados para suportar, olha para o céu, e sabe que eu vou estar lá, a olhar por ti e a torcer para que alcances todo o sucesso que me escapou por entre os dedos.”
“Espera!”, respondi, apressada. “Responde-me a uma pergunta: estás em paz?”
Mais uma vez, aquele vestígio de sorriso transpareceu na sua voz, enquanto me respondia. “Sim, estou em paz.”, disse. “Mas devo partir. Boa sorte.”
“Adeus.”, respondi, enquanto a sentia desaparecer, para dar lugar à estranha palidez da luz do dia que entrava por entre os meus olhos fechados. A revelação terminara e eu estava agora completamente desperta.
Por isso persisto, vagueante entre estradas de emoções imprevisíveis e caminhos de experiências inesperadas, sem saber ao certo como explicar as minhas origens e as mudanças que se operaram sobre mim, mas, ainda assim, sem deixar de seguir em frente, iluminada pela etérea presença daquela estrela que, em tempos, fui eu, mas que agora me vigia do alto dos mundos superiores.
Para além das apresentações que já tinha divulgado aqui, surgiu hoje a confirmação de mais uma. Assim, considerem-se desde já convidados para a sessão de apresentação do meu livro, a decorrer no dia
13 de Junho, às 16h30, no Clube Literário do Porto
Será um prazer receber-vos.
Caríssimos...
Como alguns já sabem, está quase, quase disponível o meu novo livro, "E Morreram Felizes para Sempre". Serve, pois, esta mensagem para vos convidar a assistir aos eventos que marquei até à data.
Dia 15 de Junho:
- pelas 21h30, sessão de apresentação na Biblioteca Dr. Júlio Teixeira, Vila Real
- pelas 23h00, espectáculo de apresentação no Conta Coisas, Vila Real
Se puderem aparecer, lá estarei para vos receber da melhor forma possível.
Naqueles dias, o silêncio era uma chama que lhe consumia as forças, um vazio que se entrelaçava em correntes entrecruzadas, deixando apenas a jaula da sua própria solidão. Ela era apenas um esboço da sua própria essência, um destroço inacabado entre ruínas de um vácuo que não passava da sua própria voz. E, naquela hora de sombras, quando a escuridão encobria os seus gestos, afogados entre a mordaça da cidade adormecida, ela decidira morrer.
Suspirou. Um leve sorriso aflorou aos seus lábios, débil e desamparado como o seu corpo ante o nada lá em baixo, a promessa da morte eterna, vulto gigante e tenebroso escondido na penumbra ao fundo daquela ponte. Seria tudo tão fácil, tão desesperadamente desejável… E, ainda assim, o seu pensamento hesitava, agarrado ao frágil murmúrio que lhe cantava no coração. E se ele vier? Se um dia ele voltar e tu não estiveres à sua espera?
Não… Com um gesto brusco, forçou-se a afastar esse pensamento. Ele, o homem que fora a luz das suas memórias e o tormento da sua actual solidão, partira nas vagas da distância e não voltaria jamais. Sabia-o. Sempre soubera que aquele que vira como o seu ídolo, o seu mentor, o seu tão humano herói que a ensinara a viver, não ficaria para sempre do seu lado, mas, ainda assim, cada minuto de ausência fora crescendo até ao nível de uma tortura insuportável, de um vazio demasiado tenso para afastar. E ela, perdida nos desertos de si própria, caminhara pelas estradas do destino, em busca de um novo anjo, um herói que colasse os pedaços do cristal fragmentado que era, afinal, o seu coração.
Mas ele não vinha. Ninguém viera e ela já não tinha as forças para continuar a suportar a sua tragédia pessoal. Lentamente, o seu corpo moveu-se em direcção ao abismo, um passo de cada vez. Depois, as suas mãos apoiaram-se no pequeno beiral que a afastava da sua decisão. E, quando o seu pensamento ditava à vontade que transpusesse essa última barreira, em direcção ao derradeiro salto, houve uma voz que se abriu no silêncio nocturno, e as palavras ecoaram na escuridão com a harmonia de uma sinfonia redentora.
- Não precisas de continuar. – dizia a voz – Eu estou aqui.
Surpreendida, ela voltou-se para olhar o vulto dele, a sombra quase imperceptível que agitava a escuridão silenciosa, mas que cada partícula do seu corpo reconhecia como o seu amor retornado.
- Voltaste. – murmurou, fitando o seu herói.
- Voltei. – respondeu ele, solene, como o anjo salvador que era, o herói que, mais uma vez, a redimia das suas próprias trevas – Vamos para casa?
Um suave sorriso brotou nos lábios dela, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe invadiam o olhar. Depois correu na direcção dos seus braços para, encostada ao calor do corpo que ele lhe oferecia, responder numa palavra a todas as suas vontades quebradas.
- Vamos.
Já não havia mais sonhos no seu rosto, nenhuma resposta para lá da distância do seu pensamento. Os seus olhos haviam petrificado, eternamente fixos no deserto dos céus, e ele não via ninguém, nem os vultos que se aproximavam, tentando fazer com que despertasse, nem a passagem das noites e dos dias, eternamente parados na repetição da sua imobilidade.
Não tinha mais silêncios que o seu próprio silêncio e o frio que lhe enlaçava o corpo sobre as suas roupas molhadas. A chuva havia tombado sobre o seu corpo rígido, encharcando as suas roupas, mas ele permanecera, silencioso, na memória do seu mundo perdido, esquecido de toda a esperança, perdido para toda a redenção.
Se pudesse voltar a encontrar-se… Se o passado regressasse do seu recôndito abismo, daquela gruta isolada mais longe que o próprio longe. Se apenas pudesse voltar a tocar o rosto de todos os sonhos que abandonara, a vida voltaria a fluir pelas suas veias, como um fantasmas retornado dos silêncios interiores.
Não havia, contudo, nenhum caminho capaz de inverter a estrada da sua imobilidade, a pedra em que se transformara, fria e ausente como o seu próprio coração. E ele esperava, imortal na sua imobilidade, pétreo como a mordaça dos seus sentimentos mortos, eternamente abandonado na espera de uma morte capaz de lhe estender o abraço dos seus braços.
E as lágrimas do mundo rodeavam a sua pena… mas ele nunca as poderia ver.
Caríssimos visitantes...
Está quase a nascer "E Morreram Felizes para Sempre", o meu novo livro, que é também a minha estreia no formato conto. Já podem encontrar a capa no site da editora (www.hmeditora.com) e em breve estará disponível para aquisição. Mas, enquanto não surgem novas informações, deixo aqui uma pequena apresentação do conteúdo deste meu novo trabalho. Não é nada de profissional... mas espero que apreciem.
Saudações...
Carla Ribeiro
Naquele tempo eu tinha estrelas nos olhos e um sorriso para contemplar o sol que, lentamente, me aquecia o corpo e a alma. Sonhava com a inocência de quem nunca conheceu a devastação e, quando a natureza florescia em meu redor, também o meu coração desabrochava em luz e calor.
Com o crescer dos dias, também a minha alma se elevava e, no despontar da tão ansiada Primavera, o meu coração voltava-se em direcção à luz, como um girassol que busca o calor para florescer. E amava, com a luz no sonho que me alimentava… Amava cada palavra do tempo, cada sussurro do espaço e cada silêncio do mundo.
Naquele tempo, eu sonhava com o fogo e com a glória… E o tempo passou sobre mim, como um murmúrio velado. Hoje, apenas a sombra me embala nos seus braços de penumbra e os vendavais percorrem os vales da minha casa desolada. Resta-me, pois, apenas a memória das primaveras distantes… Daquele sonho… Daquele tempo em que eu… era mais eu.
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